Peregrin e seus relógios

E no final, o que Peregrin mais queria era beber mais um gole daquele líquido laranja que a moça-flor lhe dera.
Caminhava pelo pequeno espaço do muro de espelhos. Dessa vez lhe agradava a sensação de auto-análise. Desde que pedira um chapéu emprestado havia muito que não via luz sem que parecesse que a lente do monóculo estava embaçada
Duas pessoas com fome?
Duas pessoas com fome, por que nesse dia não tiveram o que comer?
Duas pessoas com....”
O macarrão esfriou. Poderia ser motivo de chateação se Peregrin tivesse percebido isso antes da primeira garfada, que foi dada entre seis capítulos da história de duas pessoas que não haviam comido. Macarrão com tempero demais e gelado era o que seu estômago lhe pedia. Tinha certeza que no final das contas o pássaro ancestral e as frutas tropicais haviam lhe trazido sorte.


Aquele fiapo pontudo ao canto da lapela verde-gasta ainda incomodava seu pescoço. E o que mais lhe chateava era não se importar com isso. Esperava paciente o caminho lhe ceder passagem. Perdera a conta da quantidade de lamparinas de ferro haviam passado.
Seus pés apontando para lados opostos, revezavam vez para que Peregrin não caísse com o queixo a cavar um buraco, como era de costume se pensar. Mais parecia que as mãos empurravam os bolsos para baixo à moda de quem se apoia em bancos imaginários para não ceder de vez.
Lentamente o caminho cedeu vez e Peregrin havia chegado ao seu destino. Nunca lembrava exatamente o que iria fazer fora de casa, mas sabia que se havia saído, algum motivo tinha.
Uma, duas, três moedas pouco douradas compunham seu orçamento nesse dia. Era um resto que o colchão recusara e nem pelo cofre passou. Embora insistência não tivesse faltado. Resolveu que gastaria aquele fragmento de riqueza bastarda com algo que durasse pouco mais que o queijo comprado na semana passada.
"O que pode durar mais que aquilo e a dor de barriga subsequente? Algo que transpusesse o tempo..."
Sem que houvesse aviso prévio, a galope por entre matas espinhosas, a ideia lhe coiceou a razão e resolveu comprar um: RELÓGIO!
“Um relógio Peregrin? Por que não algo de útil?”
E ali ficou registrada a completa ausência de propósito dessa pessoa quanto ao excelente funcionamento de pequenas engrenagens a formar uma bela de uma hora.
Não perdera muito tempo e eis que chegou o momento da compra. Aproximou-se do balcão com determinação vulcânica. E violentamente disse: “Eu quero seu relógio mais bonito e mais bem feito!”
Infelizmente para Peregrin, suas três moedas pouco douradas só davam pra comprar o relógio de alumínio em formato de galinha ou dois relógios menores em plástico. Um imitando frutas tropicais numa quarta-feira de cinzas e o outro reproduzindo o formato de um pássaro ancestral, traduzido pela tentativa desesperada de fazer qualquer pássaro.
Decidiu pela variedade que as horas poderiam ter se levasse os ricos relógios de plástico imitando a fauna e flora pós-moderna.
Voltou com uma alegria conformada e duas sacolas. Pedira que pusessem em duas por que poderia ser que um riscasse a bela pintura do outro e que não pretendia ter mais prejuízo do que o qual já tinha consentido.
O de frutas na cozinha seria de uma falta de originalidade imensurável. Pensado isso, faltava definir onde não por o pássaro ancestral.
Sem saber exatamente como o resultado dessa operação lógico-artística se dara, na manhã seguinte dois despertadores tocavam com fúria citadina e fora de ritmo. Peregrin acordou sentindo seu coração bater nos tímpanos. Ressucitou de um sono que julgava estar sendo o melhor desde que a semana começara até então. Agradeceu com seu estômago a presteza desses aparelhinhos abençoados que tanto insistiam em realizar com empenho inigualável suas funções tão excepcionais.
Tropeçando nas quinas de todos os objetos que as possuíam, às 4h30 da madrugada, conseguiu esbofetear, em estado semi-consciente, as frutas tropicais que se encontravam no banheiro e o pássaro ancestral na lavanderia.
Seu café da manhã nesse dia foi concentrado em apurar o resultado da assembleia mental travada sobre: "Por que razão o pássaro ancestral estava na lavanderia e as frutas tropicais no banheiro? Seria alguma referência inconsciente?"
O tocar do telefone distraiu Peregrin. Havia mais um sábio e engenhoso, polido e competente despertador em seu telefone. Hora do remédio. Outro conflito. Outra assembleia.
“Qual dia da semana estou? Tomei ontem? Dois ou três comprimidos? ... Dane-se, remédio dá saúde, até hoje não fiquei doente de saúde... Não sei... De repente é melhor olhar a receita.”
Os remédios jamais foram tomados.
A busca pela receita lhe rendera três boas leituras, a organização de uma gaveta e a higienização de todos os vidros do móvel da sala, com direito a longas checagens em tutoriais de: “como se fazer uma casinha com caixas de fósforo”. Parafusar a porta do armarinho do banheiro, consertar o cabo da panela-de-pressão e reencaixar a borracha do vidro da cozinha foram coisas que só não passaram no crivo final da preguiça no processo de decisão.
Essas tarefas tomaram a manhã e logo seria a hora do almoço. Sendo domingo, poderia preparar qualquer coisas e passar fome até segunda, por causa do crivo final da preguiça. Macarrão sempre é uma opção fácil e rápida, pra quando se tem vontade dele.
O que sua barriga desejava tinha a textura, a cor, o sabor e a consistência de tudo que gostava ao mesmo tempo que não. Queria comer algo que não existia, talvez. Já era a terceira vez que abria a geladeira e esse artefato culinário ainda não tinha se materializado na prateleira. Foi à janela para olhar a paisagem e decidir o que iria comer.
Naquele dia Peregrin não almoçou.
A noite chegava, o telefone permanecia imóvel desde cedo, um bom sinal por enquanto. O jantar se aproximava e o macarrão liderava as intenções de voto. Um pacote de massa seca, um pacote de tomate líquido e mais alguns outros. Resolveu que comeria muito. Se desafiaria os limites.
“Será que consigo comer por duas pessoas? 

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