Wagner, existem pessoinhas?

Uma pessoinha tinha uma casinha.
Nessa casinha tinha uma cozinha
Cheia de faquinhas e colherzinhas.

Uma pessoinha tinha uma casinha
Nessa casinha tinham janelinhas
E nela se entrava por uma portinha.

Uma pessoinha tinha uma casinha
Essa casinha tinha um telhadinho.
Nesse telhadinho tinha uma chaminé

Um dia uma cartinha chegou
Sem abrir, a pessoinha sorriu
E com muito amor, a cartinha guardou.

Nos dias que seguiram
Muitas cartinhas chegaram
E até ao chão, algumas ficaram.

A pessoinha sorria
Boba e contente
A cada carta que recebia.

A pessoinha sorria
A cada carta que não vinha
Mas não lia.

Depois de várias noitinhas
E várias manhãzinhas
As cartinhas estavam vazias.

Vieram contar pra pessoinha
Que quem da casinha não saía,
Com as Valquírias não cavalgaria.

Porta-retrato

Sua eloquência é recheio da sobremesa de hipócritas
É exemplo de viril besta ensandecida.
É sonho de virgem cega.
É esperança de mármore ruim.

Por que ao mundo não faltam palavras
Ao mundo não falta presença
Ao mundo não faltam pessoas
Ao mundo faltam faltas.

É por não sentirem falta que se ausentam da vida
Não sentem falta por que substituem
Substituem a falta por boneca russa.
Que no final se encontra uma foto de si

Narcisismo do niilista, ou niilismo do narcisista
Ostracismo do demagogo, ou demagogia da abstenção
Que de tanto andar mancando, de olhar torto e punhal na mão
Fez personagem de história repleta de mediocridades impressionantes.

O que te preenche boneca russa?

Improducência

Épocas do arianismo intelectual.
Das oligarquias preferenciais.
Das segregações por mérito baseados na pouca reflexão.

Venha vós ao nosso reino e que sejam feitas nossas vontades.
Um mimo do inconsciente. Imperativo, hiperativo e inconsequente.
Carpe.

A propaganda perecível do impagável.
A inutilidade do imperfeito cultuada e adorada.
O despotismo da infantilidade exaltada.
Triunvirato da psique.

Que seja. Que sejam. Quaisquer que foram.
Folclore. Crendice nossa...

E ainda hasteiam bandeira queimada em telhado de igrejas semi-construídas.
Jargões em janelas de hospícios.
Bolsas de sangue em abatedouros recém-construídos.
Alimentos em mansões de madeira em podridão.

São mil os exércitos que hei de construir pra que defenda com todas as forças os ovos num covil de ignorância e intolerância.
Faça como tal e vire santo.
Santo viril.
Santo.
Mil.
São mil exércitos.

Amor de ferrovia

Construí com os sarrafos da minha consciência
Uma estrada de ferro.
Que leva os trens por onde não sabem andar.
Me dediquei a essa estrada como dedica a rosa ao seu perfume
Era pra ser linha reta. Mas usei como bigorna o gosto amargo do café
Usei como martelo a insistência petulante de algum viajante aleijado.
A estrada some no horizonte. Onde há vista, há estrada.
Consome em si a paciência de continuar correndo.
E ainda não sei quando começou a ser construída
De pronto grande pedaço de caminho havia sido colocado
No meio de um deserto de coisas a serem montadas.
Mas pra poucos é de se perceber que um grande círculo forma esse caminho.
Que circunda um cemitério. Cemitério de ferro, museu de sarrafo.
Um museu de crimes contra minha consciência.
Um museu de crimes contra uma estrada.
Portanto, sem mim não encontrarei meu fim.
Mas lhe admiro, enquanto estação de trem.
Se sou estrada, são eles os trens é é você a estação.
Não há sentido em estarem separados.